17/03/2017

Sarjeta

Chorava sentada no chão sujo da rua, entregue ao público passante curioso de sua dor. Doía uma dor escura e lamacenta sem vergonha de ser dor. Chorava o horror e todos os pensamentos que não floresceram jamais, todos os seus desejos desembrulhados no asfalto, sem serventia. Toda a sorte desprezada estava agora ali, reunida em um corpo pequeno e forte, agora solto no espaço, tomado por sentimentos que não passam nunca. Sobreviveria, mas não agora. Neste instante era apenas o fim, um tiro no peito cheio de amor estragado. Não me venham com palavras idiotas, ela não vai acreditar, disse alguém tentando ajudar. Já conhecia este lugar, era esta sua família e a casa onde morava, mas a cada vez era uma novidade, o paraíso e o inferno em comunhão, trazendo todo tipo de consequência e todos os erros e acertos no mesmo lugar desamparado de sempre. Que cansaço sentia. Se chovesse seria bom, um refresco talvez, mas era uma noite bonita e sem significado. Uma noite filha da puta. Se pudesse se levantar, partiria pra longe, andaria sem rumo até chegar em outro lugar, até ser outra pessoa que não esta de agora, conversaria com estranhos, sentaria no colo deles, mentiria e tomaria uns drinks num bar de estrada. Sempre prometeu amor às pessoas erradas e sempre cumpriu suas promessas, até cair no asfalto e chorar de ódio e dor. Mas nunca culpou ninguém, nunca, os outros que se fodam.
Talvez estivesse doente, sim, provavelmente estava doente e às vezes até que gostava de se sentir assim, ir tão baixo era também uma oportunidade, um julgamento individual tinha lá sua utilidade, olhar pra trás e pra frente de uma só vez e reconhecer o valor que a maioria das coisas não têm. Que doesse, que toda a merda viesse à tona, que fosse um mergulho sem volta. Não seria uma pessoa melhor depois disso, isso não existe, não é verdade e a vida não acontece assim, é apenas algo que os outros dizem pra que você os deixe em paz e não os lembre que também estão perdidos. Se livrar de toda essa esperança é o grande trabalho, é o que, depois de alcançado, pode trazer algum conforto pra seguir até o fim mais próximo, mas não se alcança, não se alcança nunca.
O chão continuava firme debaixo de seu corpo entregue, de vez em quando passava algum idiota e dizia algumas bobagens. Esse é o problema das pessoas. Mas não via nem ouvia nada, a dor e a raiva impediam qualquer contato ou reconhecimento. E a chuva que não vinha. Que noite filha da puta e eterna. Que céu grande em cima de mim. Que inferno quente. Alternava entre se contorcer de dor e dormir um pouco, dormir sem sonhar. Que luxo seria sonhar no asfalto numa noite bonita e filha da puta.
Entre a dor e a calma passageira, delirava. Em delírio imaginou uma daquelas lâmpadas mágicas da ficção onde você se esfrega e aparece um homem bonito e forte e te concede três desejos. Ria alto e sem parar. Que ideia ridícula. Se esfregara a vida toda em homens fortes, bonitos, feios, fracos, vorazes, famintos e sem vida. Todo tipo. Quase todos amadores e sem desejos a oferecer. A vida é muito pouco sempre, e quando é demais te joga no chão, te lambe e te faz pensar esse tipo de coisa. Que estupidez sem fim. 
Uma hora esta noite filha da puta irá terminar. Mas tinha o compromisso de levá-la consigo pra onde fosse, pra não se esquecer das descobertas, da raiva, da dor e do jeito errado de sentir amor. Pra sempre estaria doente, uma vida só não lhe ofereceria tempo suficiente pra se recuperar. Quem se recupera da vida? Não sei, não me interessa. Talvez precisasse de outras chances e de algumas noites bem dormidas fora do chão, mas isso não era uma opção. Estaria pra sempre ali, deitada no chão debaixo da noite inútil. E tudo bem. Isso também era um caminho. Talvez não para os outros, mas os outros que se fodam.

11/10/2015

Galápagos

Galápagos. Ele pretendia ir para Galápagos. Não sabia ao certo onde ficava nem o que havia por lá. Quem sabe construir uma nova vida, recomeçar, sei lá. Gostava do nome, soava bem. Queria esquecer e, talvez, fosse o lugar certo pra isso, sem nomes ou rostos pra identificar, sem a obrigação de se lembrar nem fingir gentileza. Um lugar distante de si próprio, onde as histórias fossem as dos outros, nunca as suas.Gostava de vento e, Galápagos, parecia ser nome de lugar que venta bastante, um clima fresco e agradável. Poderia morar em um barco simples, pensava. Poderia escrever um livro pra preencher o tempo e a cabeça, pra ajudar a esquecer. Esquecer exige tática, empenho e dedicação diária. Um pouco por dia jogaria um pouco de si ao mar, numa cena clichê de filme ruim, sem medo ou pesar.Quem sabe alguns poucos novos amigos, ou apenas conhecidos, pra jogar conversa fora nas noites mais quentes e dividir um peixe e algumas doses.Precisava conseguir chegar até Galápagos o quanto antes, o mais cedo possível deveria estar lá, a tempo de não desistir. A demora arranca o sentido das coisas, dos pequenos desejos aos maiores planos tudo se esvazia se o tempo passa demais. Talvez precisasse de um mapa para se inteirar de sua rota. Um novo nome também poderia vir a calhar. Gostava muito de seu nome, seria uma dor perdê-lo. Mas pensaria nisto depois, quando já estivesse lá, em Galápagos.Faria uma lista de tudo o que precisava ser esquecido, em ordem de urgência. Durante o dia se dedicaria às lembranças menos doloridas e passageiras, as mais pesadas e insuportáveis trataria durante a noite.Resolvido isto, precisava agora tratar de comprar a passagem que o levaria ao seu destino, a primeira passagem importante de sua vida. Até então, só havia feito viagens inúteis e aborrecidas para lugares onde nunca quis estar de verdade. Agora era diferente, ele partiria para Galápagos, sem chances de volta.Entendia a mudança como uma espécie de morte, uma vez que morrer é algo que não se pode evitar ou escolher. Estava pronto para dissipar para sempre histórias, pessoas, lugares, amores e tragédias.Iria fotografar Galápagos, pintar sua paisagem em telas frescas, desenhar o lugar num papel e pendurar na parede, enfiá-lo de vez em sua rotina e memória. Durante o sono, sonharia com Galápagos, como sonhamos com a casa da nossa infância.Precisava decidir a data da partida e tomar coragem para não se despedir de nada e ninguém.Não responder perguntas e permitir-se viver discretamente eram, desde já, os maiores benefícios de Galápagos. O vento, o mar, o barco onde iria morar e o peixe fresco seriam a recompensa. Queria e precisava esquecer, mas não sem reconhecer no ato certo prejuízo, portanto, merecia, sim, ser recompensado, e nada melhor que a própria natureza pra se encarregar disso.Estava deixando a barba crescer, cabelo na cabeça quase já não tinha mais, mas a barba era abundante, era só deixar seguir seu curso.Como serão os habitantes de Galápagos, pensava, que cor tem o mar de lá, pensava de novo. É claro que poderia pesquisar a respeito facilmente, mas não queria, estava muito decidido em sua escolha e tinha receio que qualquer informação o desviasse. Mas sua cabeça ia sozinha tentando adivinhar que horizonte e cheiro teriam seu futuro. Aliás, fizera isto a vida toda até ali. Tentava adivinhar uma boa surpresa todos os dias, mas isso acabou não resultando em nenhum tipo de acerto.Agora seria tudo completamente diferente. Em Galápagos, fosse como fosse, a sorte ou o azar que tivesse teriam novo cenário, não era capaz de vivenciar mais nenhum tipo de emoção nesta terra pisada de agora.Que morresse em Galápagos, que fosse feliz em Galápagos, que sofresse de dor ou ardesse de amor em Galápagos. Qualquer coisa, qualquer espécie de coisa, mas que fosse em Galápagos. 

14/03/2015

vida própria

atrás da cortina da sala da última casa da rua, ele esperava. paciente, esperava. estufava o peito e, cheio de dignidade inútil, respirava pra dentro a esperança. olhava, minuto a minuto, pela fresta da janela, a fim de espiar o bem e o mal que o espreitava na espera. esperava como quem aguarda um amor prometido no horóscopo de página de jornal. quem sabe, pensava, uma noite qualquer, ele se cansasse. ansiava isto também. confiava na desistência que todo destino promete e garante. eram dias claros, de ácido sol, eram noites escuras e densas, eram manhãs e chuvas eternas, eram dias cruéis. atrás da cortina pesada e encardida confiava estar seguro caso nada acontecesse. atrás da cortina pesada e encardida confiava estar seguro caso tudo acontecesse. era um encontro marcado com endereço exato, hora inventada e data tardia. uma ideia antiga, que se renovava diariamente atrás da janela. às vezes, apertava-se de arrependimento quando fazia as contas e não sobrava nada pra dividir. mas logo voltava à ele um brilho estranho e próprio quando lembrava-se das inúmeras razões. e firmava-se, então, novamente, preparando-se para mais uma jornada. dormia pouco, caído no chão marcado pelo tempo dos seus sapatos. acordava afoito, incrédulo e preocupado em ter perdido alguma coisa enquanto descansava de esperar. era delicado. olhos doces e loucos. boca pequena, trêmula e molhada. testa curta e nariz de antigamente. cabelos lisos como a pluma, negros como a alta madrugada. um homem dócil, perdido em delírios próprios e belos. obcecado pela natureza das coisas vãs.

20/01/2015

o rio

porque entendi que tudo o que eu dizia era uma grande bobagem, agora não digo mais. porque uma montanha me separou do resto, agora não vejo mais. a realidade engoliu meu segredo de ser quem não era nem jamais serei. fico triste, depois fico alegre, sorrio e disfarço a esperança que nunca me serviu para nada. agora espero dia sim, dia não. olho o calendário e calculo o escuro, meus planos estão sempre no mês que já passou, no dia que morreu cedo e revoltado. antes tudo isso me servia para alguma coisa, agora tenho preguiça porque já não devo mesmo esperar, o tempo passou rápido demais no antes que ainda existia, e agora anda lento e sem notícias. eu não deveria  ter começado, mas agora que voltei vou tentar ir até o fim dessas palavras que nem a mim dizem coisa alguma, nem a mim. existe um rio logo aqui ao lado, nas manhãs de sol vou até lá, sento na beira, refresco os pés e espero sentir calor pra ir embora depois. fiz isso a vida toda. amanhã, se o tempo estiver bom, irei até lá novamente, esperar um pouco mais, só pra distrair todas as outras maneiras de se fazer isso. é importante que eu lembre que algumas esperas me valeram alguma coisa, só não posso me conformar com tudo o que veio junto com elas. é mesmo difícil ser grata. um dia desses, que pode ter sido na semana passada ou há sete mil anos atrás, enquanto estava no rio, tive uma ideia que não soube nunca por em prática. arrependo-me diariamente por ter deixado pra trás essa ideia que um dia tive de mim mesma e que agora já olha pra mim um tanto envelhecida, com os olhos perdidos de dor. por aqui tudo vai sem ir realmente, numa volta inacreditável do que parecia ter ficado pra trás ou ao menos evoluído. o mesmo rio, o mesmo sol e o mesmo calor que só me enganam enquanto finjo ser enganada.

06/07/2013

um desenho ou o que aconteceu depois

vou desenhar uma árvore grande que não faz sombra nunca e inventar mil frases que expliquem o que eu quis dizer. não vou conseguir, mas vou tentar. tive um sonho em uma noite do último mês, onde alguém gritava: venha me buscar, venha me buscar. é uma boa frase, vou usá-la imediatamente pra explicar uma parte da história perdida que não sei contar. vou desenhar um céu vermelho na parte superior do papel e cantar uma música pra tentar explicar o que eu quis dizer. semana passada, tive um sonho estranho, era verde e algo dentro dele dizia bem baixinho que era pra eu acreditar e esperar. é um bom pedido quando se quer conforto sem grandes esforços. é uma boa chance de mentir que sim, talvez. dormirei somente depois que conseguir explicar tudo, sem possibilidades de dúvidas no final. vou desenhar agora um cão latindo no lado esquerdo do papel, um cãozinho azul e sem pelos na parte da frente de si mesmo. pobre cão, sonhei com ele também, ele existia como se fosse de verdade, como se não coubesse em sonho algum. eu me deitaria inteira agora em uma banheira abarrotada de água se tivesse uma. não tenho uma banheira nem um cão azul. pobre de mim que não tenho o mais importante. eu me arrependo muito e de quase tudo, mas não é sempre, só muito de vez em quando mesmo. não é todo dia e além do mais é quase sempre quando é noite, durante o dia não tenho tempo nem força pra essas realidades. mas costumo sonhar bastante, eu já falei sobre isso? então, eu sonho, muito mesmo, esses dias, acho que há uns anos atrás para ser mais exata, sonhei com um vento desses que não existem na vida comum que levamos, só em sonho mesmo. era um vento fortíssimo e muito molhado, mas era vento, não chuva. lembro-me que acordei bem cansada e quase todos os dias ainda penso nele, no vento. perco muito tempo com coisas que não possuem importância alguma, deve ser por isso. vou desenhar, por último e pela última vez, um retrato de alguém que não conheço, já desenhei, na verdade, está aqui, me olhando para sempre, pendurado na parede do corredor que leva aos sete quartos da casa que vou comprar pra viver feliz e sem explicação.

03/06/2013

halley, número três

bateu a porta e não olhou pra trás. aos poucos tudo iria se apagar, como sempre acontecia. um ódio pequeno sempre insistia no começo, mas depois ia embora com todo o resto. não gostava de lembranças, não tinha em si intimidade alguma com o que passou. já havia estado com  tantas pessoas e nunca realmente se sentira com ninguém, nem com nada. e assim iria ser sempre, por destino ou escolha. melhor não pensar. continuou caminhando por aquela estrada e por outras depois. cruzou pontes e cada vez se distanciava mais, sem volta, sem memória. tudo era novo a todo momento, uma repetição infinita das mesmas escolhas não feitas. preferia os dias de chuva e o cheiro do que ia ficando pra trás. havia feito uma pequena lista de coisas e pessoas para se lembrar pra sempre, eram poucas e estavam escritas em forma de círculo num papel de carta antigo e infantil. às vezes, duvidava se esquecia ou só fingia não lembrar para que não doesse.  e nem sabia por que doía. não sabia, não sabia mesmo. certamente seria muito trabalhoso investigar as causas, portanto, preferia deixar como estava, e tudo seria somente no presente. quando reconhecia certos rostos na rua, mudava de calçada, e quando tudo ficava pesado demais, mudava de cidade, pra poder ser livre. mas não era livre. gostaria de ser e, portanto, fazia de conta, mas não era. e além do mais, qual vida não é uma mentira? se perguntava, esbravejando. gostava mesmo era de estranhos, brindava e dançava de rosto colado com eles em noites finitas. depois continuava indo embora, afastando a culpa. culpa de quê? não sabia também. e era por isso, por essa infinidade de perguntas incômodas e sem razão aparente que preferia estar sempre esquecendo, apagando rastros e marcas na pele. pode se dizer que conseguia, mas não sem desassossego, não sem chorar no escuro uma vez por semana. quem não tem passado pode ter futuro? questionava. achava que não. dessa forma, não se sentia em lugar nenhum, e não estava mesmo em lugar algum. mas quem está? pensava de novo. evitava longas conversas e certos caminhos, por preguiça e medo de exigências alheias e futuras. não iria, em hipótese alguma, dividir segredos, isto já estava decidido há muito tempo. então, simulava razões, marcava encontros que nunca iria e oferecia, vez ou outra, um amor calculado. só uma coisa era de verdade, seu nome, gostava tanto de seu nome que sobre isto não conseguia inventar. entendia que, neste mundo, para que pudesse ter qualquer coisa teria que se dar em troca e, assim sendo, preferia continuar indo embora.

28/01/2013

do tamanho do amor


apagaram as luzes da casa que era a nossa e encostaram a porta sem promessa de volta. o amor me enforcou e infelizmente não morri. cheguei atrasada demais e então penso no que me ensinaram sobre a esperança, minha companhia vazia de agora. o silêncio do quarto e a televisão desligada pra sempre. a parede recém pintada de branco, a janela quebrada de raiva guardada e um chão inteiro pra me servir de buraco.  não existe tortura maior do que a culpa de ter oferecido felicidade em doses erradas. a dor divide a casa comigo e não me faz perguntas, apenas me julga e acusa. não quero dormir nunca mais pra poder esperar você chegar de repente, no meu corpo, falando coisas bobas baixinho em meu ouvido, afastando meus cabelos pra poder dizer melhor. nada está morto até estar, por isso não descanso de acreditar, pois, quando lembro, dou risadas felizes e fico alegre por alguns segundos. depois o medo volta e permanece a maior parte do tempo. a realidade de agora tem o tamanho do amor.

08/01/2013

a saudade


saudade é passado. névoa inventada e mal digerida, vento fértil de chuva. tanta alegria ou dias demais pra lembrar tanto assim. a saudade é um pecado. segredo escondido e maldito, ato mal feito e refeito. a cabeça zonza tentando encaixar diferente o que já se perdeu na memória. a saudade é um deserto. secando, a garganta enforcada segura o que já escapou: nas esquinas, cidades, instantes; pedaços suspensos de toda matéria perdida no limbo do que não pode mais ser. a saudade é uma nuvem. passa, revolta e refaz. foge de mim este vento, some das mãos o ódio e o calor, machuca e destrói. a saudade não presta. uma porta entreaberta pra sempre, a chave perdida da vida finita. o passado não é de ninguém, não há provas. um cheiro que volta, um tom esquisito de voz de lá longe, um morto que morre de amor. a saudade é um poder. te trago, te engulo de novo, sinto um quase daquilo e soluço: me busque outra vez. um lampejo amargo de sonho, a lonjura das coisas sem nome e sem fim. não há rastros, ninguém esteve aqui. a saudade é o inferno. a noite esquenta e a cabeça queima nas voltas sem volta que o mundo já não pode mais prometer. uma curva mal feita que empurra a vida pra trás e arranca a saliva já seca de espera. a saudade é um buraco. a moeda enterrada pra sempre e o pedido esquecido. não morrer é o engano de tudo.  o suor escorre, a febre chega e uma frase inteira vem de volta como se estivesse ali, agora, em seu próprio ouvido aberto e cansado. não tem hora pra voltar nem faz questão de ser discreta. um apelo inútil do amor. vadia. a saudade é uma dor.

11/07/2012

para não acabar


começou com um bilhete em branco deixado debaixo da porta. era um mistério com cheiro e textura. arrumou as malas, fechou as janelas, trancou as portas e se escondeu sem respirar. fugiria assim que amanhecesse. correu dos dias e devolveu o bilhete, não cabia ali uma história, pensava, tola e desprevenida. mudou de assunto, cantarolou uma música em outra língua e tentou despistar o tempo com argumentos não confiáveis. sem que pudesse perceber, primeiro entregou o braço, o esquerdo. uma semana depois, ofereceu o direito e as duas mãos e os dedos. o tempo não queria opinião e se ocupava em lhe desorientar e, cega, entregou os olhos e os cabelos. passou a confundir a alegria de então com alguma outra novidade impalpável. medrosa e distraída, demorou pra reconhecer o cheiro daquilo que não poderia levar outro nome. numa noite, voltando pra casa, seu pescoço foi levado, sua pele fina se desmanchou e foi com o vento, e assim, mais uma parte sua a deixava. enfraquecia a cada dia novo e o sangue excessivo dava sinais, teve febre por dez dias. por vontade própria, acabou por entregar os pés e as coxas das duas pernas. que a levassem, então, para onde não queria ir sozinha. conforme o medo diminuia, ia entregando os pensamentos, os bons e os maus. nesse momento já pensava em pedir o bilhete de volta e desenhar nele alguma coisa em vermelho. poderia voltar, pensava, uma vez que ainda não havia ido realmente. e queria mesmo voltar, nem que fosse pra recuperar seus membros que lhe faziam tanta falta. a cabeça já não parava mais em casa, passava os dias na rua vasculhando possibilidades de se convencer na volta. a noite, a cabeça lhe fazia propostas até que pegasse no sono sem responder ou definir. estava cansada, a cabeça, e só não havia lhe deixado ainda, pois, terrivelmente, precisava dela para existir. certa noite, em sonho, encostou sua boca em uma superfície quente que não soube identificar nem lembrar depois.  não pôde mais dormir nem levar os dias como antes. faltava-lhe o sossego e partes do corpo. já não era. já não tinha. mas queria e, portanto, a condição era que fosse buscar tudo de volta e dar o resto. então foi, e assim seu coração foi roubado.

07/01/2012

janeiro

procurando em outro lugar o que deveria encontrar em mim, me perdi numa calçada quente de verão. ouvi dizer que algo bom existia lá no fim de tudo, lá onde acaba o resto de cansaço pronto pra desistir, porém já não acumulo esperanças. ouvi um grito esta noite e acordei, pensei que me chamavam, mas era apenas mais um pesadelo não meu, sonho longínquo de quem espera alguma coisa, qualquer coisa. a vontade de sempre é a de fazer tudo em outro lugar, de cometer um delito inédito num futuro que poderia ser hoje. não descanso, não comemoro, não dou voltas em torno de ninguém do qual eu não possa fugir depois. estou às tontas acordando e dormindo num sábado de sol farto de possibilidades que não quero. pensei em contar outra história, mas na curva de agora despenquei como em tantos passados - repetição barata e sem credibilidade. eu poderia estar cantando debaixo do chuveiro e depois sair pra passear, mas me falta o inferno a queimar sem desistência ou retorno, me falta esta febre ir embora e voltar nova no meio das pernas, ao redor e no meio das pernas. que estas vozes que escuto venham o quanto antes assoprar algum calor recente em meu pescoço de pele fina e estrangulada de novidades vãs, que não vão embora, que não partem nunca.

16/11/2011

o menor nome do mundo

tinha o menor nome do mundo, o mais curto e mais bonito nome do mundo. seus olhos eram grandes e bem longes um do outro - um me olhava enquanto o outro pensava se me olharia de novo. suas mãos me diziam adeus a todo momento e sua cabeça afirmava que sim, que eu poderia, sim, esperá-lo. em sonho dançávamos uma valsa alegre e longa, dançávamos até o dia amanhecer em outro país que não o meu. eu repetia seu nome várias vezes ao dia, na tentativa histérica de que a repetição dessas duas minúsculas palavras pudessem trazê-lo para perto de mim sem retornos. fazia planos e pensava no passado que eu deixaria pra trás quando juntasse seu nome ao meu. imaginava aquelas poucas letras escritas em uma roupa minha e na casa inteira, em vermelho, claro, a cor da minha imaginação fugidia de sempre. espalhava notícias inventadas sobre mim e aquele nome longe e terno e, dia após dia, fui construindo uma história impossível e minha, tão somente minha. eu era uma ladra de nomes e queria roubar o seu, que era tão pequeno e sonoro, e enterrá-lo sem piedade na terra velha de um vaso que há anos permanecia em minha lavanderia úmida e pouco freqüentada. preciso também falar de seus cabelos, que eram escuros como uma noite sem lua, cabelos que eu fingia me pertencerem e com minhas mãos pegajosas os tateava e arrancava um a um em meus trágicos pensamentos. aquele nome não podia suspeitar de mim e de meus doces gestos ensaiados, se soubesse, fugiria. se conhecesse meu real desejo de enfeitar minha vida com seu nome, mandaria me matar para que pudesse viver em paz. por isso, com grande esforço e concentração, me mantive lúcida aos seus olhos, medindo palavras e disfarçando intenções. pobre vítima minha este nome, que, de longe e em segredo, sofre interferências de meus piores pensamentos. pobres letras, retas e ingênuas, que eu sufoco na noite escura e no dia claro, lá em cima, no céu, e nas paredes que me escondem e protegem todos os meus crimes de amor. tratei de apertar com força seu nome em meu punho fechado, para que essas poucas letras não me escapem jamais e eu as possa lhe devolver um dia, depois de feito o acordo, depois de um beijo roubado.

09/10/2011

para esquecer

estou há dias adiando esquecer uma história, enterrá-la, mudar de assunto, mas não sem lamentar a decisão de esquecer. quando penso que quase, bem quase dentro de mim toda já está tudo pronto para que isso aconteça, a história volta sozinha, sem que eu a chame, busque ou a amarre aos meus pés. então fico mais um pouco até começar a deixá-la ir embora outra vez. a vida, às vezes, nos desorienta demais. não há pergunta nem resposta que baste nessa hora, só uma falta de sossego sem precedentes. eu quero esquecer porque não quero que doa lá na frente ou logo mais. quero esquecer porque desconfio de seu vazio e me sinto tola. mas é difícil sepultar uma dúvida quando nesta contém desejo, é difícil esperar a semana que vem e depois a outra e o tempo que, sozinho, transforma tudo em passado. é doloroso suspeitar que algo que gostaríamos imensamente de possuir e viver, talvez não seja pra gente, não possa em tempo algum levar nosso nome. é um querer cego e sem sentido aparente, mas tão prazeroso de sentir que dá pena deixar pra lá logo de uma vez pra nunca mais. e então, vamos adiando. pois quando decidimos finalmente esquecer, parece que perdemos algo, um pedaço fica solto no mundo, sem dono e sem proteção e, dependendo da situação, ficamos pensando por um longo tempo como essa parte deixada estaria se ainda estivesse por perto nos aquecendo mesmo que apenas em pensamento. é de enlouquecer esse negócio de desistir sem ter certeza absoluta. dá medo e dá saudade antecipada. isso que estou escrevendo não é propriamente um texto literário como são todos os outros deste blog que vos fala, mas, sim, um desabafo, real e sincero, de alguém – que sou eu, que espera pra mudar de idéia e deixar tudo por conta do esquecimento, mas não consegue.

29/09/2011

o mapa do mundo

aqui estou, deitada no meio do mundo, no meio do vento, praticando a distância. já não sei se estou esperando, talvez nem pense nisso, mas a verdade é que houve um barulho novo, bom e inesperado. não sinto frio algum além daquele que sobe lentamente, começando exatamente pelo meio do corpo e ocupando, por fim, o resto todo, desmedidamente. frio que vira calor. em volta tudo fica amarelo, um pouco misturado com vermelho – minha cor preferida. não sei com certeza onde estou, assim como jamais saberei, certamente lugar nenhum pode nos dar este recado. inútil saber certas coisas quando se está no meio de um lugar sem nome, sem passado e sem rostos conhecidos. o mundo é mesmo muito longe. é claro que posso escolher e, como sempre, escolho ficar; sempre dá pra fugir depois, mesmo que não sem dor. que lugar alto este. a vertigem me provoca cócegas e eu rio, rio sozinha aqui do alto. viver é muito extenso e exige tempo e paciência, no mais a gente aprende e se transforma. talvez eu não volte, pelo menos não inteiramente. o tédio foi embora e agora vivo diferente: um novo sentido na língua, uma pontada no coração e as mãos um tanto trêmulas. às vezes assobio pra passar o tempo, finjo que canto alguma coisa, conto os passarinhos e enumero pontos distantes no céu quando é noite. está tudo bem por aqui. é alto, é longe e a vida é somente minha e para mim. quando olho pra baixo sinto medo, por isso estou sempre com a cabeça muito pra frente ou pra cima, tomo todos os cuidados pra não correr o risco de desistir. distância alguma pode me levar pra mais longe do que já estou ou sempre estive. não sinto saudade de nenhuma rua e nem preciso me lembrar, embora eu me lembre, de nenhum acontecimento passado. o tempo custa a passar e eu gosto assim, é sempre tarde do outro lado, posso ver no escuro um olho quase se fechando sem fechar, posso ver aqui do alto quando o dia nasce de cansaço. tantas palavras no mundo, tantas frases ditas tantas vezes e eu não sei como dizer. às vezes grito sem intenção alguma e posso ouvir o eco no vento que volta e refresca. é bonito. enviarei notícias dentro de uma caixinha decorada. quase tudo cabe agora e é bem-vindo. e o mundo, que era grande e longe, agora está mais perto de mim.

25/06/2011

o gigante azul

era grande, o que o permitia estar sempre em mais de um lugar ao mesmo tempo. talvez pudesse aproveitar, mas o fato é que tal característica mais o incomodava do que trazia benefícios. era abastado de sentimentos diversos e tinha grande dificuldade em fazer escolhas, uma vez que possuía todas elas dentro de si. era sempre visto como um afortunado ou um covarde, quando não era nem um nem outro. ocupava o mundo todo, conhecia os sete lados e perdia-se irreversivelmente na imensidão de possibilidades. esforçava-se como podia para satisfazer-se em meio a toda sorte de ofertas que lhe chegavam sem que houvesse pedido. ser grande era assim: de um lado dormia, de outro acordava. sonhava com o paraíso. queria ser mágico e saber mentir, porém vivia todo o tempo num presente feito de passado que nem chegava a conhecer, pois, quase sempre, chegava com algum atraso em seu próprio outro lado. perdia muito tempo tentando entender-se e encontrar uma maneira mais igual de ser. era delicado demais para lidar com questões tão urgentes e simultâneas. por ser azul algumas vezes misturava-se ao céu e passava um tempo por lá, camuflado, na busca de um descanso passageiro. sentia uma inveja triste dos seres minúsculos e aparentemente insignificantes. o que complicava era que sabia de sua própria insignificância, não se sentia útil e muito menos um herói como fazia acreditar seu tamanho terrível. é claro que pensava na morte como solução imediata, mas a realidade é que lhe faltava coragem para o fim. era um gigante sem finalidade. nada cabia nem servia, embora parecesse o contrário. tudo faltava ou era demais. quando chorava, chovia; portanto tentava controlar emoções extremas, o que, devido à situação, exigia grande esforço e ar puro. conhecia as vantagens, mas, ainda assim, se pudesse escolher, preferiria ter uma vida normal e idiota como a da maioria. mas era tarde, já haviam escolhido por ele e era tarde. era amoroso demais pro seu tamanho, não combinava, aliás, nada combinava, porque era, literalmente, feito de vários pedaços e restos e começos e histórias esquecidas ou ainda não contadas. era em si mesmo o seu mapa e sua terra, tinha inferno e céu próprios. só lhe faltava o paraíso.

23/03/2011

a ponte

a música era bonita e tudo esquentou ao redor. dava pra sentir o coração que saia do peito sem garantia de volta. eram dois. a luz ficava menor e resolveram dançar juntos. fabricavam, a cada passo, um momento inesquecível para pensar depois, antes de dormirem separados. existiam as cores, isso era certo, o resto era imaginação de boa qualidade. a mesa os esperava na volta, a bebida esquentava e a eternidade pedia um minuto a mais de silêncio e vapor. a volta pra casa poderia não existir, era só continuarem, se soubessem como fazê-lo. se soubessem. a compreenção de todas as coisas se tornou algo simples e valorozo, só precisavam aprender a não terminar a dança e aquela noite desigual. mas não estava escrito em lugar algum, iam ter que adivinhar. tinha também uma ponte meio amarelada de velhice, era por ela que haviam passado pra chegar até ali, era por ela também que passariam se não entendessem depressa como ficar, não ir e não voltar. tinha um céu que cobria sem proteger e o ar ventando lá fora, limpando o resto de noite que sem muito sussesso tentavam esticar. as horas realmente não demoram a passar quando mais precisamos delas, quando mais gostamos de cada pedaço do tempo que, sendo, já é também passado. o dia começava a embranquecer e eles ainda dançavam a música que ia ficando longe, dançavam com medo de morrer. uma voz aflita e fria pediu desculpas e ordenou que se retirassem, já não havia mais tempo para decisões inférteis. a ponte estava lá, como um caminho escancarado e cruel. se fossem, morreriam, se ficassem precisariam aprender a não morrer juntos pelos mesmos motivos.

05/02/2011

o fim das coisas que não nascem

primeiro ele levou a esperança embora, e depois foi também. cavou com destreza e ignorância um final para aquilo que, por sorte, tinha abocanhado numa dessas voltas estranhas que a vida dá na intenção de ajudar sem barganha. mas ele não percebia e nem se contentava com tais chances e ofertas. com o desespero típico de quem não sabe o que faz, jogava-se um pouco por dia ao nada sem mistério ou sofisticação. de perto, porém distante e só, eu observava gesto tão doente. acolhi a causa e expliquei com a calma de quem acredita, soletrei as palavras, caprichei nas frases e fiz promessas. era um homem cansado e velho em sua estupidez sem solução próxima. uma imagem infeliz era o que se podia observar do alto da montanha. mudei a tática, o caminho e por pouco não fui engolida. agora escapo. ele, sem razão decente, caminha solto e espalha culpas no escuro. mas já não engole mais fogo, suas piadas perderam a graça e o que se vê é a solidão esquecida e sem norte. várias vidas serão necessárias para que a flecha caia no lugar certo, mas eu não posso esperar porque estou ocupada demais com o que nasceu pra ser exato. a alegria é o êxito que se encontra por acaso, cada um que tome conta de seu pedaço, sem disfarces ou adiamentos. a vida não aceita desperdício ou desaforo. fim.

23/01/2011

eu não sei voltar

pode ser que a vida não se encarregue de esclarecer tais acontecimentos, pode ser que seja tudo uma invenção milagrosa e sem coragem. quando terminar continuarei sem entender se fui eu quem escolhi ou se simplesmente não haviam opções sensatas. acho que fui pouco específica ao fazer minha lista de pedidos importantes, sendo assim obtive metades desiguais. aceito. é uma maneira de fugir do tempo, dando tantas voltas talvez eu envelheça menos ou mais devagar. penso que há apenas um lugar para se estar e recordar depois, é pra dentro que se espalha todo sentimento alcançado ou desistido. é pra dentro que se foge e se perde. os medos me deixaram para nunca mais voltar, agora assumo sem vergonha que foi assim que desejei. pode me bater, devo merecer. pode me acusar, todos os adjetivos cabem aqui. perdi quase tudo o que havia aprendido sobre mim e agora fico tímida se me entendem mal. decorei inúmeras respostas para entender que agora elas não servem mais em espaço algum, o assunto mudou e me desviei de tudo para o que havia me preparado. os círculos e todos aqueles desenhos indecifráveis na parede perderam seu valor para sempre. que tolice ter acreditado tanto. a recompensa é que agora todas as questões se tornaram inexoravelmente muito antigas. já não há mais tempo, escolhi ficar aqui dentro.

24/10/2010

palavras passageiras

nunca entendi a real utilidade do amor e suas aplicações. claro que conheci dores indizíveis e criei inúmeras suspeitas nominávies à meu modo. mas não é verdade que estamos todos preparados para que alguma esperança pouse e se encarregue do resto que não temos ou ainda não alcançamos. talvez seja apenas ignorância minha. um dia disseram que nem tudo havia se perdido e que a sorte viria dentro de uma caixa pequena em forma de sentimento que não cabe nem diz. foi um sussurro passageiro que guardei sem guardar em meus ouvidos mau intencionados. dediquei os últimos anos a exercitar minha falta de razão, obtive incrível sucesso e finjo que sobrevivi àos ardores que inventei e faço de conta que hoje quem manda sou eu - mentira útil para que eu possa continuar por aqui me distraindo com o tempo que não me merece. existem notícias de que no fim haverão grandes acontecimentos, mas confesso não acreditar na esperança alheia. não existe, aliás, nada menos servil que a esperança, é somente uma bobagem que inventaram pra poder escapar sem precisar fugir. aplicarei o que sobrou no que estiver mais próximo e for mais conveniente e macio. para todas as outras coisas sem função, o adeus merecido de quem nunca chegou e por isso se despede. deveria ser comum ir embora. o amor é igual a vida, que a gente finge que entendeu e adia para sempre o momento de partir. nenhuma resposta para todas as perguntas falidas sobre a terra e outros desertos maiores. aqui estive e em todas as portas de banheiro rabisquei e duvidei. estendo agora uma faixa branca e inútil para o que não há de vir. nenhum vento pra balançar o passado vivido ou sonhado. nenhuma palavra na fumaça do amor que queimei.

27/09/2010

breve história possível

podia escolher, mas optou por tomar aquela chuva. logo na saída do supermercado pôde ver a água encharcando a noite generosamente. deu o primeiro passo em direção a rua. pensou em acender um cigarro, mas logo viu a inutilidade do gesto. estranhou-se. ele, sempre tão comedido em seus atos, tomava chuva num começo de noite de terça-feira. alegrou-se de uma alegria simples e desconhecida. imaginou ser este o sentimento das pessoas descompromissadas com a seriedade da vida e seus rumores. invejou-as por um instante. deleitava-se em sentir-se tão finitamente outro. sim, iria acabar. não poderia perder-se de vista, não ele. era o que intuia. o caos tomava conta das ruas e ele se divertia torcendo para que sua casa misteriosamente se tornasse um lugar longe, podendo assim estender sua extravagância. e se alguém me ver? sentia a espinha esfriar. era um pecador de si mesmo em uma noite quente e desprotegida. pensou em sua mãe. lembrou de seu olhar enquanto explicava a ele sobre todos os medos que nunca deveríamos ter. e pensava que, só por isso, ele possuia todos. a excentricidade alheia o apavorava. era das pessoas e suas perguntas que ele se escondia e, por tanto se esconder, esquivou-se de todas as possibilidades de se tornar, um pouco que fosse, feliz. a chuva aumentava e vinha agora acompanhada de relâmpagos. uma beleza de noite, rodopiando entre a clareza e a escuridão. combinava com ele. sorria pra dentro de si e degustava excitado seu prazer passageiro. passou por sua cabeça ter descoberto alguma novidade enquanto se molhava, mas, por preguiça ou medo, não deu sequência a tal pensamento. sua chegada se aproximava, já podia avistar a janela fechada de seu apartamento. era sozinho por escolha e medo. sempre o mesmo medo. eram íntimos, ao mesmo tempo em que se evitavam. o mais coerente seria que ele, como todos em sua volta, estivesse tentando escapar do mal tempo. mas ele tinha esperança. esperança de quê? não sabia. gostaria apenas de eternizar este momento de entrega vã e descabida. mas o fim veio rápido, já se encontrava em frente ao prédio onde morava. deu adeus às suas vontades sem coragem, chacoalhou os cabelos e entrou. era um homem grave, mas, ainda assim, ela estava disposta a oferecer a ele o seu amor. em segredo, o salvaria.

25/09/2010

do desencontro

por um instante curto e valioso acreditei ter ganhado um prêmio que sempre pensei merecer. busquei adjetivos que denominassem minha nova condição, fiz planos a médio prazo e sorri vitoriosa com meu encontro tão desejado. visualizei a confusão se afastando, as noites afoitas se despedindo e me aqueci com tão novo calor. assumi, então, que o esperava pronta e bem vestida, sabendo que em uma escura noite ele aconteceria e eu o reconheceria em meio a profusão de acontecimentos que vinha sendo minha rotina de pessoa que procura. já me imaginava coberta de razões, contente por ter sido atendida em meus desejos não confessados. comecei a me preparar para abandonar os gritos e a felicidade passageira a qual me entregava com prazer. sem arrependimentos pelo corpo, sem ter deixado nada para trás e tendo feito absolutamente tudo o que a mim coube, me percebi pronta e decorei um nome só que repetia sem parar por achar bonito e sonoro. me convenci sem maiores esforços a me deixar ser costurada, obstruindo minhas saídas e guardando em mim um rosto só, um único cheiro e motivo. estava decidido, meu amor finalmente exerceria sua função e eu seria adulta e feliz. fui fechando os cortes, dando fim aos restos, apagando mensagens e esquecendo segredos antigos - abrindo espaço para a novidade que eu havia abrigado. passei a desenhar corações no espelho embaçado do banheiro, escrevi seu nome com caneta azul em minha mão, fiz o desenho de seu cabelo em um papel branco que guardei debaixo do travesseiro pra poder dormir em segurança. não posso garantir que não inventei mais uma mentira ou imagem apenas pra passar o tempo enquanto não adormeço. não me conheço tanto assim, apenas me entrego aos riscos na intenção de encontrar algum conforto. o que existe de real é que optei por encurtar o caminho e me perdi, afastando qualquer promessa aconchegante. com o passar dos dias observei a destruição decadente de meus planos pueris. entendi que você nunca existiu em lugar algum além de dentro de mim, onde ficará até que eu mesma me perdoe e me liberte dos estragos. te guardo quente e não deixo ninguém manchar sua reputação, te defendo pelo que me trouxe. sinto-me tola por ter cometido o engano de acreditar em um novo e desejado incêndio, mas não troco esta dor pelo vazio de antes. o não-amor dói, mas doía mais quando eu desconfiava não ser capaz. talvez eu mereça essa gentileza pela metade. encontrei maneiras de viver de longe o amor que suspeitei. adaptei meu corpo e meu olhar, te espio em segredo e espero sem esperar realmente. na prática tudo está igual: a rua, as pessoas erradas, os exageros e a falta de finalidade das noites que sempre terminam. mas te escondi dentro de mim e bem baixinho converso com você e invento suas respostas que, invariavelmente, me fazem sorrir e viver mais. faço de conta que você saiu pra comprar os jornais do dia e se distraiu no caminho, e que há de voltar no meio de uma noite inesperada. o amor é uma violência que combina comigo, por isso nunca desisti de esperá-lo. eu quero o amor que mata.

24/09/2010

no deserto

gostaria muito que palavras, ditas ou escritas, pudessem, de fato, valer alguma mudança. eu realmente estaria salva se pudesse ser eu mesma a minha própria garantia. é expondo que me movimento pra alcançar ou apalpar algum entendimento. enumero diariamente meus segredos e desejos em um pedaço de papel, espalho confissões pesadas e, por vezes, ultrapasso a disposição do outro. devo ser cansativa. a maneira pouco conscienciosa que escolhi de enfrentar o amor e coisas piores não me resulta vitórias e nem me aproxima da vida clara e simples que eu gostaria de exibir. mas não consigo almejar outro modo e muito menos sinto culpa, não assino embaixo de nenhum fracasso. minhas intenções, mesmo quando não passam de equívocos, são inteiras e reais, jamais opto pela metade das coisas e dos gestos. no entanto, ao olhar pra fora encontro muito pouco, me entristeço e volto a nadar sozinha e mal intencionada. tenho rondado o perigoso desejo de querer desistir, mas este, como qualquer desejo, só pode prosperar se nascer naturalmente, e não acredito que tamanha falta tome conta de mim. sei que a desistência talvez fosse uma solução, mas tenho total entendimento de que, para certas coisas, não existem retornos ou desvios. investi muito alto e por muito tempo em ser o que sou, e agora não saberia reconhecer o caminho que me fizesse voltar e recomeçar de outra forma. meus meios são pouco nobres mas minhas razões são genuínas, e confesso que me envaideço por ter dado tão certo o meu plano cego de chegar viva até aqui. mas esta certeza é apenas minha e sem proteções. tento incansavelmente me espalhar e sugerir barganhas, mas falta algo que se encaixe com perfeição, algo que se mantenha comigo e me lambuze dos sentimentos reais que nunca me chegaram. o que me corrompe é a necessidade de precisar dividir calores e felicidade para que estes existam efetivamente, se eu me bastasse talvez nem estivesse agora escrevendo essas desanimadas palavras. esta lacuna não é nenhuma novidade, porém, sempre houve uma esperança vil em encontrar algo que promovesse em mim algum sentido. seja como for, não posso mais me apoiar nisso, não consigo mais disfarçar. mas também não sei desistir realmente. encontro-me agora em um ponto suspenso, onde um ar velho e pesado balança meus cabelos frustrados. o tempo não pára para que eu possa decidir, e além do mais, mesmo que isso fosse possível, eu não iria aceitar porque tenho pressa. não me enxergo nas pessoas que protelam, não acredito ser possível destratar um desejo desta forma, deixando-o para depois. em uma de minhas extremidades existe uma flecha apontando para frente, é o que me orienta. meu caminho é nítido e certo, mas me desamparo ao ter que contar com o que me é alheio. os desejos frouxos e mornos dos que me cercam arrancam-me com violência desta vida que levei a sério. tenho enorme talento para viver, mas preciso admitir que a vida é um deserto com mania de grandeza.

19/09/2010

ausência

e então disse: vou buscar outra maneira. foi, correu riscos vãos e voltou, outra vez, sem nada de novo pra carregar sobre os ombros desejosos de algum peso inédito. quis desistir, mas lembrou que a desistência era evidentemente mais trabalhosa que a continuidade coerente dos fatos. seguiu. experimentava, mudava de idéia, de olhares e de companhia em sua cama cansada. era muito claro o que não servia para si e, para além dos muros, espiava o que ainda não lhe chegara, ansiava novas possibilidades. disfarçava perfeitamente bem, porém, observando de perto, seus gestos pedintes revelavam tamanha espera. entre uma mentira e outra inventava ruídos que nunca chegavam, e quando chegavam era sempre de forma diferente da imaginada. idealizava gemidos e sensações, e solenemente, os aguardava. fingia gostar, sorria demoradamente e prometia baixezas nos ouvidos oferecidos da noite. quem sabe por tanto fingir não acabaria gostando realmente. porém, o que sabia era grande, muito maior do que aquilo que, cinicamente, ensaiava contentar-se. a realidade era que a cada novo enforcamento pouco sobrava, lembrava por dias pequenos e depois dispensava do pensamento. pensava tanto, criava imagens tão verdadeiras que, de tão vívidas, quase não precisava que fossem reais num plano fixo de terra firme e segura. talvez nem quisesse, talvez estivesse enlouquecendo de uma vez por todas a fim de satisfazer heroicamente os que sempre apostaram na loucura como sua única e fatídica salvação. quem sabe não fosse mesmo uma bela idéia entregar totalmente as rédeas da imaginação que sempre a rondara e lhe trouxera benefícios. se era livre, podia também ser insana e sem explicações. e assim, morrer se tornaria simples. e agora basta de aplaudirem, os gritos aqui têm dono e atendem por um único nome.

01/09/2010

livre arbítrio

não vou mais espalhar meus enganos. tratarei de apagá-los tão logo os identifique. a vergonha de deparar-se com o que já não se sente ou nunca existiu, não pode durar tanto assim. agora eu mesma escolherei os fins, mudarei de assunto e excluirei toda memória apodrecida. não posso mesmo apalpar minhas invenções e, sendo assim, opto pelo abstrato. vou fugir por uns dias, perder de novo o controle e abandonar de vez esta mania obsessiva de construir razões e sentimentos passageiros. passei um bom tempo presa ao que inventei esperar e existir, portanto vou me distrair dos motivos errados que escolhi vasculhar, remexer. sou vã, sempre fui. não possuo finalidades e posso mentir toda mentira do mundo e acreditar em instantes que não quero mais que durem. o tempo passou tão rapido que mal consigo visualizar e enumerar o absurdo de acontecimentos recentes. me coloco agora onde nunca estive ou quis estar - no começo. me reinicio na esperança de anular o passado confuso e invisível. não quero pegar em nada nem ter nada que se obtenha através de planos. não posso mais cair nos buracos vazios que são os meus planos que não acontecem. estou livre. já não peço, não rezo, não faço promessas e nem quero chegar. solto meus pés do chão e me deixo, levemente, sem pesar nem desejo. o querer me cansou, esgotou em mim minhas próprias possibilidades e invenções. estou exausta de meus próprios pedidos e anseios. se nada chega, não vou buscar. garanto que essas palavras representam a desistência em seu melhor sentido. me dou ao nada, e só a ele, por amparar minhas faltas e me confortar.

09/08/2010

o perigo

minha intenção real é prosperar no que me é alheio, até que tudo se transforme num grande absurdo, numa história que perde seu começo e termina mal. o que realmente me interessa pode ser considerado capricho e vaidade sem futuro. admito que só mesmo o que não presta me tráz sentimentos vitais e calores que perduram por dias, alimentando vontades esburacadas. tenho me repetido, há muito tempo tenho me repetido, seja por palavras ou atos indisfarçáveis. mas preciso continuar, mesmo que o assunto seja o mesmo. os caminhos errados e efêmeros são os únicos capazes de aliviar meu cansaço eterno e triste. perdi uma parte importante no que diz respeito ao entendimento comum do que é nobre e certo. sou leal comigo, assumo máculas e pedaços perdidos que não fiz e nem faço questão de resgatar. quero o que se estraga e não dura, mas também desejo o interminável e para sempre. têm momentos em que penso que a calma e a estabilidade poderiam me preparar melhor e me trazer algum conforto. mas logo lembro que minhas escolhas deficientes são meu único privilégio numa vida que considero tola. pode soar como desespero, mas é só honestidade e insatisfação. não vou me reconhecer em nenhum outro caminho, mesmo este sendo o melhor pra quem me assiste e se lamenta por amor. o amor entrou em mim pela porta dos fundos e se alojou em meio a sujeira e a beleza que inventei existir. não vou tentar outras vias nem fabricar razões que não sejam as minhas próprias. sou amoral em relação aos sentimentos. amo, me sujo, odeio, me arrependo, amo de novo e não cumpro minhas promessas. não vou cumprir, mesmo que continue prometendo, e isto vai acontecer, não cumprirei. estarei sempre indo em direção ao que, em tese, não deveria me servir e que é justamente o que me serve. vou me enforcar para atender expectativas e depois vou viver de novo. existir não é justo. é mesmo muito perigoso ser feliz.

25/07/2010

fábula para entender o amor

era um coelho rosa e cego que queria deixar de ser um coelho cego. não havia sido assim desde sempre, no começo de sua ainda curta vida podia assistir a tudo, sem limitações. não sabia precisar em que momento havia parado de enxergar, só lembrava que um certo dia, ao tentar abrir os olhos pela manhã, estes se recusaram a abrir e assim se mantinham até então. sua vida se tornara uma penúria sem fim, sem razão e sem prazer. numa noite escura e barulhenta, pôde ouvir em seus ouvidos bem abertos, um coxixo que dizia existir, sim, uma solução para seu problema com o escuro. como, pensava ele, como? o coxixo coxixou somente isso e foi embora, sem deixar nenhuma pista, deixando o coelho ainda mais desassossegado do que sempre fora. passou a dedicar seu tempo a tatear a solução prometida em segredo. até que sonhou um sonho digno de espanto. no sonho existia uma mão sem o resto do corpo, uma mão viva, e nela estava escrito em letras pequenas de cor preta a palavra Amor. a mão fazia movimentos de dança bem próximos ao seu rosto, deixando o coelho um pouco tonto. quando acordou, entendeu que aquela era a mão do coxixo, ligou as duas coisas a partir de cálculos matemáticos compreensíveis apenas ao mundo dos coelhos rosas. era uma espécie inteligente. passou a dedicar seus dias e noites e madrugadas em claro, a tentar decifrar o recado do sonho. quando estava prestes a enlouquecer, lembrou-se de seu passado recente, e lembrou-se que durante todo o tempo em que ainda enxergava, era um coelho mau-caráter, sem escrúpulos e muito enganador. contava muitas mentiras, fazia promessas que jamais cumpria e tornava a vida alheia um verdadeiro fracasso. era um animal odioso. nunca havia observado seu próprio passado desta forma honesta e difícil, pontuando seus erros e maldades. era realmente a primeira vez que, não sem muita vergonha, enxergava sua própria existência de maneira tão tenebrosa. até então, jamais havia questionado seus rasos poderes. começava a compreender que havia algum elo entre seu passado, sua cegueira e o coxixo da mão do sonho. mas não conseguia de forma alguma ordenar suas desconfianças. sua falta de entendimento, somada ao desespero já existente, provocou nele uma auto piedade sem precedentes, pela primeira vez sentia pena de alguém, que no caso, era ele mesmo. dormiu um pouco e acordou com o mesmo sentimento incômodo da noite anterior, pôde perceber de forma objetiva que essa dor de ser não o abandonaria facilmente. seus dias passaram a ser ainda mais tristes, porque agora ele sentia, e sentir o fazia existir mais que antes. o sentimento cresceu e passou a exigir cuidados e atenção de sua parte, e ele, que nunca tivera preocupações reais com o outro, sentiu-se obrigado a organizar a situação. dormia o mais que podia na esperança de rever a mão em sonho. a mão, pensava, é a minha solução. numa noite exaustiva, pegou no sono e lá estava a mão com a palavra escrita. seu coração bateu mais forte, muito mais forte que antes e nunca. o coelho pôs-se a chorar e implorar para que a mão o levasse para onde pudesse enxergar e viver feliz. seu contato com o bom havia se estabelecido no momento em que passou a querer seu próprio bem. o coelho se amava, pela primeira vez ele despejava este sentimento em algo vivo. ele, que estava apaixonado por si, pôde ver de novo que era rosa e pequeno demais pra ser sozinho.

24/07/2010

as coisas não têm paz

não posso calcular o número de vezes que já me arrependi pelos mesmos motivos. sinto muito em ser uma pessoa que pouco aprende com o que de errado experimenta. me arrependo e me torturo, grito dentro e fora de mim e, depois, faço tudo de novo. igual e pior. sou uma novidade aterradora para mim mesma, um desastre correndo o risco eterno de quem nunca teve medo e defende uma coragem perigosa e inadequada. eu errei de propósito e se ainda estou aqui é porque tenho sorte, muita sorte. queria agora entrar num sono profundo e não despertar por dias, gostaria de aprender alguma coisa importante enquanto dormisse, gostaria muito de ser uma cabeça coerente; mas não sei me comportar de forma razoável por muito tempo. sinto vergonha de minha falta de inteligência neste sentido, principalmente porque, em dias assim, meus desejos são sombrios e tudo o que houve até então perde seu significado e se transforma num lodo sem razão. tudo se mistura se tornando ruim, sem sombra de bondade. num dia faço promessas edificantes, no outro ajo como se nunca tivesse acreditado ou apostado em mim. é um inferno ingrato repleto de dor e maldade. alguém me arranque daqui, por favor, estou pedindo verdadeiramente. preciso admitir que na solidão não vou conseguir, já tentei, não deu certo. preciso de motivos pesados e convincentes, senão nunca vou me tornar a pessoa que planejei e que, por preguiça e escassez, nunca cheguei a tentar ser realmente.

22/07/2010

de novo para sempre

depois de tanto se repetir, arriscou se comportar de forma diferente, quase alheia e, honestamente, quase sem conseguir. pôs-se a se esforçar, e enquanto caminhava ouvindo sempre a mesma música alta, fazia promessas a si mesma de superar erros fúteis transformados em cobranças que não paravam de chegar. quem sabe debaixo daquela velha sombra calma que sempre ignorou não poderia encontrar enfim um modo digno de continuar sendo quem sempre foi, estabelecendo apenas meios menos insanos. mas gostava da insanidade, do que era errado aos olhos suspeitos do mundo real. porém, começara a entender que fugir do mundo real era mais desesperador e cansativo do que tentar adaptar-se a ele. na verdade não tinha certeza se realmente começara a entender as coisas assim, de todo modo estava disposta a fingir que sim. e tentava, arduamente, dia após dia, reconhecer-se no caminho diferente que se propunha. sabia que poderia cair em desgraça a qualquer momento, as ocasiões eram sempre perfeitas para isso. e então sorria e, cabisbaixa, meneava o olhar para um lado, depois para o outro, disfarçando o impossível. era dela aquele estado das coisas; seus pelos, pele e cabelos já estavam há muito inundados por aquele jeito eloquente que, sem pereceber, havia construido sem muita calma. sabia o quão penoso era ser quem era. sim, era divertido, era uma grande história sem duvida, mas pesava. pesava o peso da inconsequência e do calor que esta sempre tráz. gostava assim, era um alívio se perder, mas os benefícios, pouco a pouco, estavam se tornando menores e inúteis e, sendo assim, precisava abordar outras possibilidades de prazer. fez uma aposta alta consigo mesma e pediu algo em troca, algo bom e grande, algo que provocasse nela os arrepios de outrora, só mudando os meios de sentí-los. mas só valeria se fosse assim, não se transformaria por menos que isso, de graça não poderia ser. porque sempre queria mais, e em seus devaneios diários acreditava merecer.

02/07/2010

tempo nenhum

pensar no passado é um pouco terminar pra sempre, desparecer numa história que já nem parece própria e que se assemelha mais a um coxixo alheio e distante. mas é um assunto que me ronda e, vez ou outra, passa a noite comigo. mesmo que seu fardo seja sempre ficar para trás, o passado, por vezes, se ocupa dos motivos errados e nos faz cogitar reparos e retornos insanos. é um pedaço estranho de tempo que todo dia já não nos pertence mais e sempre nos faz sentir um pouco fracassados. por mais brilhantes e ternos que tenham sido os anos e anos afoitos contados na história, sempre nos incomodará recolher lembranças íntimas que desesperadamente nos atingem com os entornos dramáticos que adquire tudo aquilo o que deixa de existir.
me deparei dia desses com um pedaço grande de passado, desses que passam sem passar para sempre. passado demorado e culpado - a culpa é outro elemento bastante familiar quando se trata dos dias que não resolvemos direito, ou que pensamos ter resolvido errado. quando isso acontece o futuro vira esmola barata, porque a tristeza incerta balança dentro da gente, insiste, remoe, não perdoa.
nunca estou onde pareço estar, isso é um fato. lembro muito, calculo, refaço as contas. e, quando não volto, avanço. o presente, torço para que acabe logo. sem perceber não crio vínculo com a realidade, não com essa que nos faz ter a exata noção do que se faz, se é, se quer. não tenho uma só frase inteira pra designar o agora, nunca tenho. finjo surpresa e simulo esquecimento enquanto ganho tempo pra pensar, mas não estou aqui nem em lugar algum que não sejam em minhas lembranças ou planos. é um tempo esquisito, mas o único que me atrai. meus flertes com a realidade não passam de ficção, invento que entendi, quando na verdade não existe lucidez alguma - nem no passado, nem agora, nem depois.

30/05/2010

sentimento

penso em parar por aqui. honestamente penso em deixar de querer e para sempre não desejar mais. imagino possibilidades e faço planos para o meu nada. é mesmo tudo mentira e em algum momento eu terei mesmo que pensar em terminar, e se fosse agora não me desagradaria. eu falo de morte como falo de amor e de vida, são versões da mesma história, história que inventei e não deu certo, deixei de acreditar. eu tinha preparado tudo, estava tudo combinado, ajeitado da melhor forma para que fosse uma vida feliz, mas a deformidade foi maior e venceu. o estranho me envolveu e eu caí de cama. não quero, tenho preguiça de pensar que pode ser de novo novidade, não tenho o direito de me desapontar ainda mais. sou cruel com os outros, minto, traio, mas comigo mesma preciso ser leal; meu corpo está povoado por verdades sobre mim que não preciso e nem quero esconder. se eu pudesse fazer um pedido, eu pediria pra viver de ficção, fora isso não quero pedir nada e mesmo isso ninguém vai me dar. não quero mais o que tem em volta, quero fazer parte de uma notícia do passado e gostaria muito que me esquecessem. eu precisava tanto ir embora, queria alguém que me pegasse pela mão e mostrasse o caminho. o que eu quero é ter fim e isso é bem razoável, é um direito. o que me entristesse é que sei que sou obrigada a continuar, porque apesar de tudo existe o medo, o mesmo medo que me faz não querer mais estar e ser. é confuso. este meu desejo já me transformou em outra pessoa, mesmo que eu fique, e eu vou ficar, já não sou a mesma e nem sou feliz.

18/04/2010

o amor é um número

meu corpo se lamenta carregado de um pedaço que deixaram por aqui. agora ando acompanhada, meu vazio se ocupou e declarou mais uma guerra. a tristeza e suas visitas triunfais me escandalizam. não tem espaço e eu quero chorar e ser sincera, entregar o que me dói e não me salva. aceito a idéia nova de conviver com este resto de começo, não há opção por perto, não há como voltar e provavelmente eu nem quisesse. é a confusão que só aumenta cumprindo sua promessa, tirando meu conforto. é claro que estou falando de amor. o meu amor não existe, não toma conta de mim, a não ser assim, por capítulos que não se concluem porque eu enjoaria se fosse alcançada. o tédio me corrompe e para fugir eu fujo antes, desapareço, nunca estive. o amor é um recado que ninguém deixou pra mim. sei que vou fechar meus olhos e refazer os cálculos enquanto espero o sono vir e me roubar pra ele enquanto me lambe consolando-me por instantes que não duram. talvez eu deva admitir minha atração pelas pausas. eu as procuro e francamente desconfio que estas me agradam, são a única companhia que eu poderia ter sem não querer ter mais. é da minha natureza ir embora e certamente eu esteja recebendo apenas o que pedi pra ter, como um desejo não confessado e atendido. mão nenhuma pode me afagar e eu bem que queria que desordenassem meus cabelos e vontades, que me rodopiassem e tirassem de mim o que eu nasci para não oferecer. eu queria poder, com simplicidade eu queria poder. agora passarei uns dias em um outro lugar de mim, fazendo planos irrealizáveis para o futuro. da próxima vez não vai ser diferente, essa mentira não vou contar. eu já sei, pude ver antes, eu mesma li em minha mão. só continuo pra poder fazer algum sentido e acreditar que o que há de imutável em mim possa não ser tão sólido. não estou falando de esperança porque isto é uma palavra inventada e muito pouco útil, estou falando mesmo de amor, que por si só não tem sinônimos e não me pertence.

24/03/2010

confusão, cabeça e coração

algumas nuvens por aqui. esperar, voltar, partir. uma demora me aguarda e exige uma resposta que não sei dar, não vou dar. um caminho tortuoso e completamente não planejado ou desejado. o desejo existe, ronda minha noite e penso ser em vão, mas o guardo para depois, para alimentar noites mal dormidas e rechear o que invento e confundo. não há quer ser justo, mas preciso entender, sempre preciso entender, mesmo que não seja a resposta correta é necessário que eu me explique, para, então, mudar de idéia sem desperdício. não posso enxergar, não vejo futuro nessas condições e futuro algum me interessa realmente, gosto de não saber a quantos metros estou do próximo abismo. abismos me interessam muito. os dias aumentam e, mesmo não querendo, faço promessas que prometem novos planos. eu minto. minto para exagerar no outro o que lhe falta, não é leviandade, sou uma boa pessoa com os que me cercam, o que, tragicamente, sempre mancha minha reputação. sei que me maldizem por aí, acusam-me de ter deixado para trás coisas alheias que em algum momento me entregaram sem que eu tivesse pedido, acusam-me de ter roubado a paz um dia prometida em frases curtas e pouco vindouras. não enganei ninguém jamais, é só olhar bem, sou clara e entregue e, se minto, é porque me pedem um pouco mais, exigem, então dou, dou sem dar. não preciso me desculpar, sou um ato público e me ofereço. sou confusão, cabeça e coração. e é tudo de verdade.

21/03/2010

sobre o que vem por último

andava afobada, esperando e prometendo o que não se promete. agora um silêncio vem caindo, rodeando os pensamentos, enfeitando nenhuma novidade. andei exausta, me cansei e penso em me recuperar simplesmente não planejando mais. não há nada por aqui, somente vultos que nomeio para poder ordená-los e dar a estes algum passado digno. vou continuar e tentar suportar minha falta de prática no que diz respeito aos assuntos que se repetem mas que esqueço e faço igual, finjo igual, tudo de novo e para sempre. não me conformo porque anseio e, mesmo não acreditando de verdade, sei que tudo pode acontecer, esta é a melhor desgraça da vida. suponho, enterro-me para chamar atenção e depois escolho esquecer. mas não posso mais. vim sem algumas partes, faltou em mim o discernimento necessário para ser uma boa pessoa em meu próprio benefício. me arrisco e permanecerei assim, mas já conheço essa história, não existe grande novidade que me espante, já decorei todas as passagens e posso enxergar no escuro.

19/02/2010

desvarios reais

e estava ela lá, flertando novamente com um suposto amor. tinha idéias descabidas que apagava logo em seguida do pensamento com medo de ser boba o suficiente e ser pega no flagra pelo mesmo destino ladrão que a roubara tantas vezes de seu estado conformador. mas sabia que nesta vida ou noutra qualquer que lhe fosse oferecida, sonharia acordada com plumas brancas deixadas em sua porta como prova de um amor inédito. se cansava por meses, mas depois voltava tonta a inventar que existia algo feito só pra ela, um algo meio alguém afoito por seus beijos e repleto dos machismos que tanto a encantavam. por saber-se tola, escondia-se por detrás de tanta sabedoria que acumulava ao dormir sozinha com seus sonhos mundanos. um dia, pensava, um dia isso acaba. um dia, quem sabe, me torno outra pessoa. esperava realmente por isso, mesmo sem acreditar verdadeiramente. sabia que, pelo menos enquanto estivesse viva, não sentiria nada menor do que ela própria, e bem que gostaria de desejar um pouco menos para que doesse menos em vida. e doía, doía viver essa angustia pesada que a havia sido imposta por um ser sobrenatural antes mesmo de vir ao mundo. que tragédia, pensava, que tragédia. sim, era dramática, quase uma ópera. mas era uma ópera engraçada e, por isso, não sucumbia totalmente, e nem na frente dos outros. será que algum dia a terra se abriria em chamas e algo de novo seria mostrado a ela? sim, esperava um grande acontecimento, queria participar disso, achava que merecia. e merecia mesmo.

10/01/2010

de novo agora

quando algo novo surge, surge também, em mim, a sensação aliviadora do desapego aos acontecimentos anteriores e já envelhecidos. uma lista de ordens já ficou bem longe, nunca estiveram por aqui. tenho convivido com recentes novidades e iminencias. a vida muda. a casa é a mesma, as mãos, o corpo, tudo igual, porém minhas suspeitas são outras, tomam o caminho dos fatos. a realidade é mesmo um incômodo, para mim sempre foi, mas agora flerto com ela, faço pedidos e os desejo com vontade. vontade de pisar num chão bem firme e gostar. vontade de mudar costumes e planos mortos. é como se o meu próprio passado recente não importasse, posso avistar sem medo dias grandes e menos medrosos. estou contente. se algumas coisas não permitem o nosso controle, então que a mão voraz do tempo se encarregue de dissipar medo e receio. vou ouvir vozes durante meu sono, me apegar ao que ainda não pude. viverei de novo aos gritos.

03/04/2009

o papel branco ou nenhuma razão para isso

não existia um assunto urgente e também não era um assunto só. eram segredos disformes ao pequeno olhar. arrependimentos e verdades verdadeiras. recados a quem interessassem saltavam do papel sem cor sem pedir perdão. não era ali lugar para coisas tais e não pretendia mesmo se desculpar. confusões, muitas, mas tudo verdade, no seu próprio tempo e terror e amor e raiva e amor de novo. era uma carta de fundo de papel branco e fosco. e era público. toda espécie de coisa passada tinha virado palavra, em uma língua qualquer, sabedoria barata para tentar dizer, ao menos dizer. só para não ficar pululando por aí, de cabeça em cabeça, era melhor então ecrever tudo. se arrepender é agoniante demais e as coisas vivas e possíveis estão aí, tem cor e cheiro e dão saudade e sofrem de algum mal.
tudo começava bem lá atrás, com letras miúdas e lentas, perto da desistência. depois foi em frente e as letras se agigantaram e se enfeitaram para ninguém. se podia contar tudo, fosse como fosse, ia acabar falando a mais, corrompendo o papel branco com tamanha irresponsabilidade. falar a verdade, só se for assim, pensou. só se for assim. e acabou contando tudo.
vieram os grandes fatos, não aqueles que acontecem num dia ou numa noite, mas aqueles que se somam e viram um, se apoderam de contar o que tem dentro. para esses não existem invenções, a cabeça insiste, vai e volta sem sossego e não permite a ausência de um encontro.
de madrugada, lembrava e acumulava frases para o dia seguinte, o papel branco ia ficando menos branco e menos novo. o tempo se encarregava das imperfeições, é sua promessa, sempre foi.
não existia mais vida útil fora dali, nada mesmo interessava e toda conversa se tornava descabida. não havia tempo, a não ser aquele usado para contar em palavras. tinha mesmo decidido parar de esconder e, junto com isso, precisava também lembrar, e como era difícil lembrar. sempre havia tentado escapar e fugir, tanto que em certo momento pode perceber a falta de clareza que havia em comentar vida e passado próprios. tinha feito de propósito. tanta coisa mal feita e perdida tinham feito crescer uma culpa inventada e pesada. mas agora havia descoberto que podia dizer se não precisasse ser abrindo a boca, e aquele papel branco era a solução confortável. precisava de uma solução e havia diposição para isso. e assim foi, sem regras – e não sem se perder – que tudo foi existindo de novo, podia agora olhar sua própria vida e história de forma que tomasse conhecimento dos motivos insinuados. nunca teria certeza, isso sabia e por isso continuava, imaginar era mesmo uma aventura muito melhor.
depois o tempo parou de passar. as palavras continuavam pulando e a falta de sono permitia que culpa, medo, passado e razões perdidas se tornassem inimigos menos incovenientes. é melhor não nomear sentimentos que vão sem ir, é melhor a amplidão de possibilidades, um susto diferente a cada pedaço caído de lembrança. pode-se dizer que o melhor mesmo seria não pensar mais, mas parece que a vida é algo que se sente só depois e, sendo assim, é melhor guardar.

06/03/2009

bons ventos

me esforço para não esquecer. continuo. mas tudo mudou. não vou esperar, já passou o terror de não ter. agora tem um vento aqui, bate sem voltar e aumenta de tamanho a cada novo assunto. tudo bem novo e meu. é o meu olhar que olha em volta e não estranha e só anseia e se balança a cada novo rodopio, a cada troca de lugar. tenho novidades, todas íntimas e realmente novas. não sinto tristeza, não me lamento, troco favores com a felicidade. do passado não me recordo, mas estico meu pescoço e espio sem saudade aquele resto que não serviu, joguei mesmo fora para não alcançar.

06/01/2009

sendo

mesmo que eu precise inventar, lá bem dentro tem um escândalo a me empurrar, me obrigar a continuar. os dias leves não me convencem, eu procuro no drama os calores que quero encontrar, misturo os sabores, confundo os que passam e subo bem alto para depois me arrepender e doer e fazer tudo de novo e viver pedindo desculpas. posso insinuar ternura e amor, mas não o faria sem perigo ou tragédia, sem a possibilidade vital de tremer, passional, sobre a finura em que me equilibro sem pender exatamente para lado nenhum. não pode ser pouco, não deve bastar, quero sobrar no excesso, nadar no que irá ser varrido depois. acumular. quem me socorre sou eu, não faço apelos, apenas grito em público, mas o que soa alto nada quer pedir, só desejar, como forma de vida que não sufoque e não faça desistir. na alegria impera também a exaustão, um disparate de dor às avessas. não pode ser menos, não deve faltar, eu quero empurrar o meu corpo e usar o que me veio a mais em meu próprio existir, por vezes benéfico, por vezes estúpido. eu exagero, eu sei, mas nunca me dei a menos, esse pesadelo não irá me assombrar. a culpa faz parte disso, mas suporto porque sou eu quem a invento e dou um jeito de fazer os dias correrem afastando o último do que há de vir. no escuro penduro os colares e brincos, remoo valores que não entendo mas que me cobram porque me foram passados, depois tomo um veneno para afastar da memória o que devem dizer por aí. não me importo. só não posso estar no meio do caminho, a medida é alta, só posso me mover se for até o fim, até onde posso caber e descansar na paz intranquila de quem nunca vai ter sossego. isso não me foi prometido e também nunca pedi leveza alguma, serenidade nenhuma me alcançará. são apenas vultos os dias que me acolhem sem ardor. não os considero. é preciso pesar, inchar, senão me disperso de mim e quero voltar e não ser. o que está resolvido é o que não se resolve, o que não vou encontrar e não sei.

19/12/2008

a verdade provisória

a distância combina com meu corpo. não almejo futuros e não me dou bem com promessas. o que eu quero tem em mim o espirito amaldiçoado do que não se adia ou se desvia. vou me perder de você, já é certo. palavras poucas não me abastecem, eu finjo bem, mas o que espero é o terror dos dias e sentimentos alterados e dramáticos. eu quero o amor que mata. ou morre. vou dar um fim pra você e, em silêncio, você sumirá de mim, nunca ouvi falar, é o que gritarei por aí. o teu descaso e desejo pouco afoito me exasperam e retiram o que você em mim plantou, sem sementes ou promessas. é muito pouco. ou sou eu quem exagero em ser em tão pequeno e gostoso corpo um ser eloquente e merecedor apenas das dramaticidades do amor e dor e séculos atrás de mim. não me caibo. falta. sempre sobra algum espaço a completar. não vem ninguém, e nenhum grito, além do meu, alcança, em vão, o verdadeiro e íntimo espaço a morrer sem se encharcar. vá, sem tragédia ou desespero. não há decepções em mim. tudo em mim já se mostrou e escancarou e não há vil esperança que possa me tomar. eu apenas me distraio, invento e finjo que milagres acontecem. milagres me atraem, embora não existam. eu não fui a sorteada, amor nenhum há de ser meu e me tomar. vá embora com seu pouco, e ache alguém que ache muito o que pra mim há de faltar. não seu culpe, o defeito é todo meu, o castigo é para mim, em sonho já haviam me avisado. nasci lá atrás, bem pequena e tortuosa, era sábado e chovia. o amor que eu inventei foi pra enfeitar o meu colchão, minha noite e meu perdão, na desculpa de me dar, de ter sido castigada pela falta que me faço. estou só. e o meu amor vou espalhar, subir na mesa e inventar que estou feliz e que ninguém mais do que eu aproveitou a vida vã a mergulhar tanta beleza e disfarçar felicidade e se entregar, como se fosse de verdade, como se fosse despencar. o meu drama é estar aqui e confessar todas respostas que ninguém me perguntou. aqui me dispo e despeço. é com Deus que eu converso, já não vou mais me matar.

inferno

como é que se faz quando tudo vai embora, perde, esquece e nada vem buscar?
em qual lugar desse meu corpo tolo e desconhecido eu sepultei a alegria suspeita que me rondava vermelha e voluptuosa e que agora, invisível e intocável, não encontro mais aqui. vou olhar em volta, desarrumar a casa e as roupas e investigar os cantos e a poeira que se formou desde que inventei sentir este inferno que é querer demais e que, ao primeiro encanto, me confundiu e me convidou a mais pura e plena felicidade insinuada. mentira. invenção. eu esperei, é certo, desejei e fiz planos para o nada vazio e secreto aqui, bem aqui, posso mostrar onde. mas o vulcão desejado e imprevisto me dá e me tira e depois me dá e depois me escapa e foge e não diz se volta para deitar em minha cama, rasgar tudo de novo o que em mim já se abriu e não tem volta. não, não saia de mim, inferno cobiçado e adquirido, mas me povõe também por espaços maiores de tempo, cause-me enjôo, faz-me cansada e absolvida. estraga logo a minha vida, me corrompa, faça isso, já arranquei todos os cabelos do meu corpo suado e este calor só aumenta e fervilha meus odores, os piores e mais sinceros e obscenos, e este amor que de tanto insistir me extasia e me machuca e me deixa aqui plantada e oferecida para nada me trazer. oh, inferno feito em brasa e rodopios, vêm e arranca-me do exílio, me dê mais disso que te peço e te imploro de joelhos e prometo que não vou mais descansar, eu não quero descansar. não dê palpites ou conselhos, não preciso, e não perdôo se você não me alterar. é um castigo ter meu corpo tão entregue ao travesseiro e a cama agora dura me incomoda esperando tais sussurros no plural. mas sua chama me conhece a este ponto e me tortura sem desconto ou gratidão. é um disparate ter os males e os bens num só lugar.

14/12/2008

aniversário

para então, depois, ir-se, sem presságio ou gentileza.
melhor morrer como fugir.
tamanha a indelicadeza de viver.

07/12/2008

a insanidade

e o tempo que também é assim e que é feito do que é feito de nós e tão somente nossa única matéria e composição a esperar, enganar, envolver. um homem-não-homem e invisível, decerto cinza, que espalha recados e some e nos trai. o tempo que não quero ter, o tempo que apresso, disparo e estaciono, em vão. um dono demente, autoritário e servil, que me manda ir embora, ficar, esperar e nos adianta segredos e coxixos vindouros do que não se vê. uma brasa espalhafatosa é o que o tempo é. irregular e desobediente, sem presságios, sem pistas, sem moldes. o próprio Deus que suspeitamos e não podemos apalpar. repentino é o tempo, sem previsões nos concede e dá e tira e devolve e foge para sempre. um afago nos cabelos hoje, outra morte amanhã. o abrigo da esperança, a temperança em seu recheio vasto e indizível, o único motivo de todos os motivos irreais que, por bondade ou trapaça, o tempo nos permite criar e poder nos manter cambaleando, ora menos, ora muito mais. é o que não avisa o número de dias ou de dores, cruel e sem negociações preventivas nos apodrece em cadeiras e janelas a esperar. o que nos sacode na boa surpresa de quem não acredita ou espera aventura nenhuma e se despede dos males, presente do tempo. um tapa na cara, uma porta trancada para sempre. para sempre e nunca mais. no ódio nos arrasta sem perdão e nos tortura, depois faz promessas que por vezes cumpri, por vezes mente. não temos tempo quando na verdade é apenas o que temos. no amor nos rouba, sem compensações futuras, e no inferno da desordem nos toma para ele, muda-se para dentro de nós, eternamente. depois muda de idéia e nos devolve, num dia à toa, vontades e langores já esquecidos, conformados. não há insultos nem agradecimentos, não existe razão ou rédea de sentimento algum, não podemos prometer, garantir, enfeitar. tempo ladrão, perdulário e altruísta. nosso espelho. assim nos vemos e só assim verdadeiramente somos e inventamos existir. o tempo é Deus, e só ele o é, não tenho dúvidas. manipulador de dias e madrugadas que nem chegam a acontecer, ou que duram muito mais e nos fazem acreditar que merecemos o êxtase que precede a gratidão. o meu tempo, o seu tempo e o tempo do mundo desde lá atrás até perder de vista, é tudo o que nos escapa e o que em nós parece durar, é somente o que temos e tão somente o que não temos. a reunião de todas as coisas, existentes ou não, todos os bens e todos os males não são de nossa propriedade, não assinamos embaixo de nada, não podemos, embora vivamos como se fôssemos de fato uma pessoa com indícios e medos e planos e doações. e o tempo, permissivo que é, nos aproxima de nossas supostas possibilidades, para depois, com distanciamento, termos tempo de sobra para nos arrepender ou querer mais. dou meu tempo, meu amor, faço ameaças e morro de vez em quando, para depois duvidar se realmente alguma coisa aconteceu, se mudei de lugar ou virei outra pessoa num espaço que não poderia de fato relatar com honestidade. já me entreguei sem precisar desistir, a noção temporária de que posso dar ou receber alguma coisa faz com que algumas perguntas não se ocupem de mim, não por ignorância, mas por amor e desejo de continuar eu mesma inventando meu próprios dias e calores que ainda quero sentir e oferecer.

29/11/2008

veneno

a porta abria e fechava, num esforço maior em deixar algo entrar. era o vento e era o cheiro e um barulho que invadiam a casa, os travesseiros e os lençóis. havia uma desordem e um abandono triste de noites quentes sem razão ou companhia. apenas um copo, um prato, uma toalha e um único corpo, ofegante e sem par. uma casa cega e sem novidades, era assim agora o meu lugar. o passado ia e vinha, em delírio eu enxergava algum futuro próximo e engolia goles grandes de água limpa pra espantar o meu calor sozinho e não perder os sentidos que ainda me salvavam. a porta continuava a abrir e depois fechar, num ruído irritante e inútil. nada chegava em minha casa agora inabitável e com saudade. eu pensava em buscar, trazer de volta e voltar a abrir os olhos para ver então seus olhos em cima de mim, em volta de mim. seus olhos entrando em mim sem adeus. pensava em suas mãos tão brancas e minha saudade cortava-me outro pedaço. imaginava, repetia seu nome aos gritos, dormia e sonhava de propósito com você. ninguém me ouvia, eu não tinha salvação. a saudade me envenenou, me afastou daqui para sempre e nunca mais te vi.

27/11/2008

a m o r

e então falamos de amor e nos atiramos para não morrer, não sobrar. o amor escandaloso e sangrento nos arrastou pelo chão já sem cor e não quer mais dormir. vamos embora, vamos fugir, já está combinado. vou puxar seus cabelos e dançar pra você. no próximo mês, quem sabe. é este seu nome e não há desaforo nenhum em ter pressa, não existe passado, vamos fugir amanhã, já está combinado. vamos falar bem baixinho e inventar outro tempo, vou me dar pra você, já está combinado. já roubei seu amor e plantei em meus pés, me esfreguei sem parar, sem ter volta. não vou devolver. o que você me pedir eu te dou. já te dei meu amor, vou te dar meu amor, já está combinado.

18/11/2008

eu tenho planos pra você



tudo meu ainda está aqui, quero de novo te emprestar, posso me dar por horas longas, não precisa devolver, minhas noites te esperam, pode vir sem avisar, vêm pisar tudo de novo, escrever em meus cabelos, encostar seu peso quente e querer me machucar, todo antes foi embora, o meu corpo agora é outro e o meu passado bem pequeno, tenho os poros remexidos e um cheiro que não sai, minha pele se rasgou, já não existe mais sossego, em meu sono afasto as pernas, me assanho em pensamento e quase grito sem gritar, vou fugir pra te buscar, te trancar dentro de mim, me esfregar em seus desvãos sem descansar ou me ausentar, tráz teus pelos, teu pescoço, tua boca e este inferno que não posso adiar, já molhei toda minha casa, me apertei contra parede, repassei cada pedaço, mas é pouco, eu preciso me afogar, traga-me seus dedos, pode entrar e me roubar, estancar entre minhas coxas o meu sangue oferecido e me apertar, volta, vêm me machucar, vou cochichar em seu ouvido meus pedidos e vontades, meu corpo não aceita essa demora e sai em busca toda noite procurando o seu suor, tudo em mim só quer voltar, repetir, continuar, vou te enforcar com minhas mãos, te trazer de volta a tona e pedir mais, te devolvo então meus seios pra você fazer de novo e inventar novos motivos pra querer me machucar.

09/11/2008

o dia em que não fui mais embora



houve um dia em que decidi acabar, terminar para sempre. eu já não precisava de mim para me acompanhar, as coisas continuariam, o mundo não se acabaria e o pequeno pedaço que sou não atrapalharia a ordem das coisas. saí no meio da noite, a escuridão me esconderia melhor, o que me pouparia de calcular o meu medo. mas era um medo sem nome, sem cheiro e sem pernas para correr atrás de mim. mas existia. e sua presença todos os dias em minha vida incentivou-me a deixar de ser e existir. eu já me sentia cansada em ser uma pessoa com medo, eu já nem era uma pessoa, não sentia ser. minha carne resistia, não queria abandonar tão belo mundo interrompendo seus desejos. mas os pensamentos se atrapalhavam trêmulos pelo medo sem nome. parti. levando comigo meu corpo triste que queria ficar. no terceiro dia de nosso caminho o meu corpo adoeceu e caiu de cama numa estrada barata e medrosa, tornando inviável qualquer passo que minha cabeça quisesse dar.
se for para voltar eu posso ter forças, mas, se continuarmos, morreremos, disse meu corpo para minha cabeça. se você tem medo eu tenho outras coisas, disse ele, e se você desistir e voltar eu posso fazer você feliz e você vai poder balançar seus cabelos e nenhum susto vai te incomodar além dos que vou te oferecer.
minha cabeça cansada e com medo não compreendia as promessas do corpo e o pediu que explicasse melhor.
você, disse o corpo, você é a minha cabeça e não é possível que nada tenha chegado até aí além de seu medo sem nome nem calor, aqui em minha garganta estão as palavras que eu preciso voltar pra buscar e dizer e ficar sem ter que partir. tenho em mim um odor espalhado, um inferno de coisas para experimentar e poder viver pelas noites e noites e nunca enjoar. se você, pobre cabeça, não puder entender, é porque não és minha assim como não posso te pertencer. em meu pés juntam-se coisas, acumulam-se prazeres e dores que você nunca sentiu. você recusou meus alívios e gritos e meu querer mais. eu quero mais, e se você não quiser nós morreremos os dois e eu nunca te perdoarei. não me deixe doente e pense outra vez. quero viver este inferno do amor que transborda em meu corpo e arrepia os meu seios e pelos sutis. se você concordar você vai me entender, pois sabemos que você é quem manda. saiba, cabeça minha, que tudo o que vi e senti foi pouco demais pra nós dois. vamos voltar, eu te empresto minhas pernas, pinto meu rosto que é nosso e depois podemos dançar. vou te enviar pelas veias mensagens históricas que tenho gravadas aqui, em meu solo tão fértil e barrento estão enterrados amores de ontem que escondi pra te dar. vai ser tudo nosso. tenho um milhão de saudades e posso dividí-las com você para que adormeça pensando nelas, e quando isso acontecer, quando você aprender a comer minhas lembranças, você entenderá e também vai querer mais para poder viver lembrando. porque eu, sozinho, cabeça querida, não tenho passado nenhum para buscar. eu preciso de você pra alimentar minhas cobiças, prolongar minha esperança em ter dentro de mim o que precinto e sei de cor. vamos comigo, roçar nossos cabelos em meu pequeno passado e depois ficar lembrando e se molhando enquanto lembra.
e a cabeça sem ternura anterior aceitou dar meia volta, em silêncio e sem medo não quis mais ir embora.

07/11/2008

o eu

tudo era muito vermelho, só vermelho e eu duvidava, cambaleava esfregando os olhos com ambas as mãos. era tudo verdade. me sentei, abri a janela, a menor de todas, espiei o que já não era mais meu. o meu lugar agora era este e no chão haviam três sapatos vermelhos que logo me apossei. são meus. vão combinar com todo o resto, pensei. haviam deixado também alguns bilhetes, espalhados e escondidos, que fui encontrando aos poucos. eram recados íntimos e indecentes, ordens e pedidos que ignorei. móveis pouquíssimos: uma cadeira vermelha, uma meia cama vazia e um quadro abandonado no chão, onde, observando bem , podia-se ver um beijo desfocado. na parede, também vermelha, lia-se uma palavra: eu. fixei meus olhos no eu da parede vermelha, comecei a entender o possível significado de minha presença ali, naquele espaço exíguo e tão alheio. estava escrito em branco em letras simples e legíveis. já não me sentia tão incomodada, o que me deu coragem para abrir também a janela maior, a maior de todas. abri. não havia nada lá fora, nada que me prendesse além do vento que limpava o ambiente. era o eu da parede que me segurava agora, e comecei a reconhecer as vantagens do lugar vermelho e inóspito. eram muitas as vantagens. o eu da parede me fazia companhia, minhas horas embebiam-se em tamanha descoberta. que susto bom! a cadeira vermelha passou a me ser útil, e o fato de ser vermelha desculpava toda sua falta de conforto. coloquei-a em frente a parede do eu, sentei-me, e enquanto mexia em meus cabelos fazendo nós engraçados e depois desmanchando-os, lia aquela sílaba como se ela demorasse mais que uma sílaba. muito mais. pensei no fim do mundo, sempre penso sobre isso nas horas mais bonitas intensas eternas sozinhas reveladoras minhas. o eu da parede me revirou em êxtase. dentro de mim nunca havia entrado nada parecido, tantas cócegas e o meu contentamento não seria explicável com palavras que já exitem. eu teria que inventar se quisesse, mas eu não precisava de palavra nenhuma além do eu da parede. comecei a chorar, não era tristeza, ou melhor, era, mas não essa de significado vulgar e tolo. não. era uma felicidade incomparável em minha vida naquele instante, naquele vermelho inundado pelo eu branco. resolvi calçar um dos sapatos vermelhos, ficaram lindos em meus pés. tirei toda minha roupa e mantive os sapatos. meu corpo branco combinava com o eu da parede que combinava com meus sapatos novos. eu não queria ir embora dali, nunca mais, nunca mais, nunca mais ninguém me tira daqui, eu gritava. não vou sentir fome não preciso de nada façam de conta que morri, me esqueçam, eu já não serviria mesmo mais para ninguém, não preciso de ninguém. eu tinha uma sílaba, uma cadeira, uma meia cama e três pares de sapatos novos da minha cor preferida. eu e o eu escrito na parede nos tornamos cúmplices e com o passar dos dias e noites começamos a correr perigo juntos. comecei a desejar o eu sem a parede junto e o eu também não queria mais viver colado nela. eu estava apaixonada pelo eu da parede e o eu da parede também me queria, mas ele era da parede, não meu. a parede, vermelha que era, passou a ficar ciumenta e não me queria mais lá, me mandou vestir a roupa e ir embora, os sapatos, disse ela, eu podia levar. pedi pra ficar, implorei e ofereci dinheiro. não adiantou. mas ela não amava o eu, ela só não queria que ele fosse embora para ser meu. pedi mais uns dias e ela me deu três, depois disso rua. dediquei meus três dias a fazer promessas para o eu que era da parede e que não queria mais ser. tive que ir embora.

05/11/2008

não vou mais pedir desculpas, eu preciso descansar. alguns sinais se apresentaram e eu não vou mais esperar que alguém me diga ou me pergunte, é sozinha mesmo que caminho, vou só continuar. escondi tudo de mim, não quero ver, pode apagar e desistir, não vou mais continuar. aquilo tudo ficou velho, outra cor, não reconheço o mesmo hálito, vou modificar e entregar o que chegou e vai chegar. olha lá, está passando um novo filme e ele diz muito de mim, vou escrever o que senti pra depois continuar. vou entregar todos segredos, sem mentir ou inventar, apartar todos os medos, não vai doer ou machucar. pendurei alguns desenhos e agora durmo a observar, cogitar novos anseios que adiei por adiar. escapei de um quase incêndio, ainda tenho febre mas prefiro não contar, depois eu me arrependo e não consigo perdoar. a minha culpa é muito triste e eu preciso me entregar, abrir de novo as pernas e viver só de gritar. vou esquecer de tudo, prometo, vou tentar, vou ser melhor comigo e impedir qualquer perigo e fugir todos os dias e correr e festejar. vou limpar agora a casa, receber outro assunto e me despir e me apertar, e por fim vai ter um dia que não vou mais acordar, não sentir mais a vergonha de ser triste e não saber como escapar.